Torre da Guaita, no cume do monte Titano, sobranceira à planície de Emília-Romana.

Morte de um paraíso fiscal

Outrora considerado um local seguro para a colocação de capitais que se pretendia escaparem ao fisco, a pequena república cravada nos Apeninos levou em cheio com a crise económica e o controlo de Roma sobre as fugas de capitais.

Publicado em 18 Outubro 2010 às 14:45
i k o  | Torre da Guaita, no cume do monte Titano, sobranceira à planície de Emília-Romana.

O paraíso fiscal da República de São Marinho extingue-se, sob as primeiras brumas outonais que envolvem a Fortaleza. A última ordem de expulsão foi anunciada no início de outubro, quando o Banco de Itália pôs um dos seus administradores à frente da Caixa de Aforro de Rimini que controla o Crédito Industrial de São Marinho, um dos 12 bancos da República. Segundo os inspetores da Via Nazionale [sede do Banco de Itália], a lei antibranqueamento terá sido violada de forma incontestável.

Antigamente, São Marinho era uma terra de emigração. Mas na década de 1960, a Riviera adriática conheceu uma forte expansão económica, com a chegada do turismo e o desenvolvimento do comércio e da indústria. Acompanhando o bem-estar material, chegaram os primeiros fundos não declarados ao fisco: hoteleiros e comerciantes deslocaram-se da região da Emília-Romana para depositar os seus lucros em São Marinho.

O crime organizado criou raízes no enclave

Até à overdose dos anos 1990. Ao lado dos quatro bancos históricos, 59 sociedades e oito organismos de crédito ocupam-se essencialmente em recolher fundos e investi-los; mas oferecem muito poucos serviços financeiros: assim se criou um verdadeiro país de abundância para todos os que pretendiam movimentar capitais ilegais. Mas o dinheiro sujo atraído por São Marinho não vinha apenas de Itália: nove em cada dez euros vinham de outros países. Os russos instalaram-se no comércio por atacado e o crime organizado criou raízes no enclave.

Os escândalos financeiros não tardaram a estoirar, como o do grupo Delta, controlado pela gloriosa Caixa de Aforro –, criada no final do século XIX com as economias dos camponeses e dos trabalhadores –, que se tornou, com o passar dos anos, o centro de dinheiros escusos. O paraíso fiscal foi arrastado no tsunami económico mundial, acompanhado da fiscalização aos paraísos fiscais, a criação de listas negras da OCDE e o embargo movido pelo Governo italiano.

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"São Marinho excedeu todos os limites"

“Essa era acabou. São Marinho excedeu todos os limites”, reconhece Marco Arzilli, secretário de Estado da Indústria. O atual Governo – uma coligação democrata-cristã, à frente do país desde 2008 – tem feito de tudo para eliminar o rótulo de capital das fraudes que está colado à Fortaleza. “Quando entrámos para o Governo, o Estado estava vigiado de perto pela Moneyval [comissão contra branqueamentos de capitais] e constava da lista negra da OCDE. Em dois anos, mudámos imenso a situação”, afirma a secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros, Antonella Mularoni.

“Acabámos com as sociedades anónimas e o sigilo bancário; em termos de transparência bancária, alinhámos pelos modelos internacionais; fechámos numerosas empresas fictícias. E preparamo-nos para assinar dois acordos: o primeiro, de colaboração entre a nossa polícia e a polícia italiana; o segundo, de autorização aos inspetores do Banco de Itália para entrarem nas instituições da nossa República. O problema, é que o Governo italiano faz orelhas moucas em relação a isso.” Tal como o FMI, em Washington.

“É uma atitude totalmente incompreensível”, acrescenta. Uma coisa é certa: em São Marinho, os banqueiros tornaram-se discretos. No ano passado, o refluxo de capitais foi devastador: o banco central fala de uma quebra de 35%. Os defraudadores do fisco deixaram de confiar no Monte Titã [promontório sobre o qual foi construído São Marinho] e as medidas de proteção fiscal [votadas em Itália] esvaziaram os cofres-fortes: uma saída de quase seis mil milhões dos 14 mil milhões de euros depositados.

"Querem dar cabo de nós"

Acresce que a crise toca todas as profissões, com uma diminuição dos contratos e da liquidez dos organismos que não conseguem aceder ao mercado interbancário. A coroar tudo isto, um gigante como o banco UniCredit quer pôr termo à sua aliança histórica com o Banca Agrícola e Comercial. “Querem dar cabo de nós”, afirma com convicção Marco Beccari, secretário do sindicato democrático dos trabalhadores de São Marinho. “Claro que os que agiram com desonestidade mancharam a nossa imagem. Mas, no fundo, a nossa economia está saudável e temos de protegê-la. São 31 mil habitantes, 20 mil trabalhadores, dos quais 6500 vindos de Emília-Romana”.

Cerca de quatro mil funcionários públicos e 15 mil assalariados do setor privado – nos domínios do comércio, mecânica, siderurgia, indústria farmacêutica e cerâmica – trabalham nas regiões industriais próximas da fronteira de São Marinho. Este microcosmo, que não se modificou um milímetro durante anos, sofre hoje as consequências das medidas fiscais drásticas do Governo italiano.

Fala-se num défice de 80 milhões de euros no orçamento do Estado para este ano e de pelo menos o dobro para 2011. Acena-se com uma eventual intervenção do FMI, que apoiaria a República de São Marinho com linhas de crédito, como fez na Grécia ou na Argentina. “Certas empresas voltaram para Itália; outras deixaram de aceitar as nossas faturas. É como se tivéssemos peste”, queixa-se Beccali.

A Liga do Norte é a única esperança

A crise económica passou por ali: no ano passado, 1% dos trabalhadores perdeu o seu posto de trabalho. As indemnizações por desemprego técnico desses 1500 assalariados dispararam. E o trabalho ilegal aumentou. Estes números podem parecer irrisórios, mas têm grande peso no mundo idílico de São Marinho, que sempre viveu com bem-estar e generosidade: reformas calculadas sobre a remuneração, refeitórios de empresa com refeições a 1,50 euros, boa proteção social, empréstimos para compra de primeira habitação e infantários.

Estas garantias estão agora ameaçadas pelo embargo vindo de Roma e são agravadas pela queda do imobiliário. No Monte Titã, construiu-se em cada recesso, sendo o imobiliário uma das principais formas de branquear dinheiro. Hoje, há pelo menos sete mil imóveis devolutos. “O nosso objetivo é salvar a parte sã da economia”, explicam-nos na Câmara de Comércio. “Caso contrário, estoira tudo, incluindo para os trabalhadores italianos e as empresas dos arredores que executam as encomendas provenientes de São Marinho”.

Só resta uma esperança: a Liga do Norte, que obtém grande número de votos junto dos trabalhadores da região limítrofe da República. “São os únicos que podem chamar o Governo italiano à razão”, diz-se em São Marinho, recordando que o ministro italiano da Economia, Giulio Tremonti, foi em tempos conselheiro dos bancos de São Marinho…

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