"A pátria está em perigo": Gulliver em Liliput, por Fernando Filipe de Orleães (1830). Biblioteca do Congresso dos EUA

Um gigante com pés de chumbo

O projecto de organizar um Serviço Europeu de Acção Externa, recentemente apresentado por Catherine Ashton, será suficiente para promover a União Europeia à tão aspirada categoria de potência internacional? Nada é menos seguro, dado o estado actual da administração, a relutância dos Estados-membros em ceder-lhe prerrogativas e a batalha institucional pelos poderes.

Publicado em 29 Março 2010 às 14:55
"A pátria está em perigo": Gulliver em Liliput, por Fernando Filipe de Orleães (1830). Biblioteca do Congresso dos EUA

Não fazer caso da União Europeia nunca foi tão fácil nem tão barato. Primeiro foi a Rússia que, em Agosto de 2008, passou por cima de todos os acordos de segurança europeus e invadiu a Geórgia, como represália pelo insensato ataque dos georgianos à capital da Ossétia do Sul. A seguir, foi a China que, em Novembro do mesmo ano, se deu ao luxo de suspender a sua cimeira com a UE como forma de protesto pelo encontro de Sarkozy com o Dalai Lama. Um mês depois, quando Israel arrasou Gaza, a UE propôs-se prontamente a financiar a reconstrução, sem sequer ter ponderado pedir contas a Telavive.

E, quando chegou a cimeira do clima, realizada em Dezembro passado, em Copenhaga, Washington e Pequim aliaram-se para passar por cima dos europeus e sabotar a conclusão de um acordo sobre redução de emissões, com carácter jurídico vinculativo. Posteriormente Obama, cujos índices de popularidade na Europa são mais altos do que no seu próprio país, decidiu que tinha mais que fazer do que assistir à cimeira EUA-UE, que iria realizar-se durante a presidência espanhola. E, para completar o rol, nós, europeus, desfazemo-nos em desculpas perante Trípoli, porque as autoridades suíças tiveram a ousadia de deter o filho de Kadhafi por maus-tratos..

Custos gigantes, influência limitada

Tudo isto apesar de uma implantação diplomática espectacular. Segundo os dados disponíveis, os 27 Estados-membros da União Europeia mantêm abertos 2172 embaixadas e 933 consulados, aos quais há a acrescentar 125 delegações da Comissão Europeia. Em contrapartida, os Estados Unidos da América têm apenas 170 embaixadas e 63 consulados. Para manter em funcionamento está máquina impressionante, os ministérios dos Negócios Estrangeiros dos 27 e a Comissão Europeia empregam cerca de 110 mil pessoas. Destes, metade – ou seja, cerca de 55 mil – são funcionários nacionais (diplomatas, adidos e outros), sendo a outra metade constituída por pessoal local, contratado para prestar serviço nessas legações. Comparativamente, os Estados Unidos têm um número semelhante de diplomatas, adidos e outros (48 mil), mas só precisa de 18 mil contratados locais para prestar serviço nas suas embaixadas e consulados.

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Para qualquer empresário, o diagnostico seria evidente: com 13 vezes mais embaixadas e consulados do que os Estados Unidos e três vezes mais pessoal local, os europeus incorrem em gastos enormes, em troca de uma eficácia muito limitada. A sua recomendação seria bastante previsível: proceda-se a fusões e a especializações por áreas geográficas ou por temas, evite-se as duplicações, crie-se valor acrescentado!

Cão que ladra não morde

Nos últimos dias, reina grande agitação em Bruxelas, após a apresentação, por Lady Ashton, do plano relativo à criação do Serviço Europeu de Acção Externa (SEAE), uma das inovações previstas no Tratado de Lisboa, com o objectivo de melhorar a unidade e a coerência da diplomacia europeia. Em vez de, como tem sido a norma até agora, cada um travar a guerra por sua conta, os Estados decidiram fundir os três organismos de que depende, actualmente, a diplomacia europeia: a Direcção-Geral de Relações Externas, da Comissão Europeia; as unidades de política externa e de segurança, que, até há uns meses, estavam nas mãos de Javier Solana, no Conselho – e integrar nesse novo serviço um número significativo de diplomatas nacionais em comissão de serviço.

No papel, tudo fazia bastante sentido. Na hora da verdade, porém, a fusão está a ser muito mais complicada do que o previsto. O Conselho e os Estados-membros resistem a colocar os seus instrumentos de gestão de crise sob a tutela da Comissão Europeia, que desprezam secretamente por ser lenta e burocrática. Já a Comissão resiste a colocar nas mãos dos diplomatas nacionais os impressionantes instrumentos financeiros de que dispõe (entre eles a muito cobiçada política de cooperação para o desenvolvimento). E o Parlamento Europeu, que, apesar de se fazer sempre de vítima, acaba por ser o grande ganhador em todos os novos tratados, quer usar os seus novos poderes orçamentais para intervir decisivamente na configuração do novo serviço.

Neste momento, há quem fale de "guerra de trincheiras". Mas não é caso para tanto: se lermos as propostas de decisão sucessivas, tudo quanto os europeus são capazes de atirar uns contra os outros são artigos legais, organigramas e notas de rodapé. Enquanto isso, o resto do mundo espera. Como em Casablanca, de Michael Curtiz. "E espera."

Visto da América

Cepticismo em Washington

Enquanto Lady Ashton cria o seu novo Serviço de Acção Externa, a Europa sente-se "picada" pela indiferença da América, escreve The New York Times. Depois de o presidente da Comissão, José Manuel Durão Barroso, ter apelado aos europeus para que "pensem global e ajam a nível transatlântico", grande líderes europeus afirmam agora à A Obama que "os europeus podem ser parceiros no que se refere a desafios globais, que vão da segurança às alterações climáticas". Contudo, as autoridades americanas e os especialistas europeus mantêm-se educadamente cépticos. Com os dirigentes nacionais europeus centrados nos seus próprios debates sobre a Grécia e a crise da dívida, o Velho Continente não é "um problema para os Estados Unidos mas também não é uma ajuda". Desde o 11 de Setembro, os interesses dos EUA deslocaram-se para o Médio Oriente, Afeganistão, China e Irão – mas, até agora, a UE não tem acompanhado essa tendência. Por isso, será viável a ideia colectiva europeia de uma potência mundial? Segundo um antigo embaixador, "eles falam muito nisso mas não o fazem".

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