Contra todas as regras

Quem comete erros, sofre as consequências. Desde o início da crise, faz agora cinco anos, esta regra básica da economia de mercado tem sido desrespeitada, lamenta o jornal Zeit. Entre valores morais e prosperidade, os dirigentes políticos vão ter de escolher.

Publicado em 6 Janeiro 2012 às 16:32

Quem se der hoje ao trabalho de navegar pelos fóruns da Internet dedicados à crise económica fará uma descoberta interessante: não são os montantes astronómicos injetados no mercado, nem os diversos fundos de apoio criados que provocam mal-estar, mas a identidade dos destinatários desse dinheiro. Os banqueiros, que encheram os bolsos durante imenso tempo e que hoje entram na falência. Os Estados, que viveram acima das suas capacidades e que não conseguem obter dinheiro novo. Os proprietários, que contraíram demasiados créditos e agora não são capazes de garantir o serviço das suas dívidas.

Em vez de serem punidos, estes desvios de comportamento são recompensados - e é a isso que se vem assistindo nas sociedades ocidentais, ao longo dos últimos cinco anos. Para entender o crescente enfastiamento em relação aos planos de salvação, há que ter em conta não apenas os aspetos financeiros, mas também a dimensão moral da crise.

Há um conceito de psicologia que nos pode ser útil: o fenómeno da dissonância cognitiva. Define a diferença entre a forma como vemos o mundo e o curso real dos acontecimentos. Como na fábula [de Esopo] que põe em confronto uma raposa esfomeada e os ramos altos de uma parreira com uvas; os saltos da raposa para tentar chegar aos cachos, sem sucesso, representa uma falha que não se encaixa na imagem que o animal tem de si próprio, habituado a conseguir tudo o que pretendia. Não é muito diferente do que acontece às pessoas nos países industrializados.

O princípio da responsabilidade individual, profundamente enraizado no pensamento ocidental, é o cerne da noção de justiça em todas as sociedades individualizadas do Ocidente: cada um é responsável pelos seus atos. A correlação entre o risco e a responsabilidade é a base do capitalismo. É isso que permite ao mercado transformar a busca individual de lucro em benefício coletivo. "O cuidado nos investimentos depende da responsabilidade do investidor. Sem responsabilidade, verifica-se um excesso de indulgência", escrevia o economista Walter Eucken, de Friburgo, um dos teóricos da economia de mercado, nos anos quarenta do século passado. E ainda hoje, a maioria dos especialistas concorda com esta análise.

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Solidariedade incondicional destruiria o capitalismo

Em contrapartida, uma solidariedade incondicional para com todos destruiria os sistemas de incentivos do capitalismo – e, portanto, do próprio capitalismo. Porque esse imperativo da economia de mercado e a noção de justiça predominante na sociedade se encaixam tão bem é que o apelo a uma maior responsabilidade individual se tornou o refrão da banda sonora das reformas liberais a partir da década de 1980. Qualquer um pode ter sucesso, mas qualquer um pode também falhar.

Como tantas vezes acontece, foram os norte-americanos que levaram este raciocínio ao limite. Num recente debate público, o apresentador, Wolf Blitzer, perguntou a Ron Paul, candidato Republicano à presidência dos Estados Unidos, como devia a sociedade abordar o caso de um jovem que não tinha achado necessário fazer um seguro de saúde e agora estava em coma. Tem de assumir as suas responsabilidades, respondeu Ron Paul. Wolf Blitzer perguntou-lhe se isso significava que a sociedade o devia deixar morrer: "Sim!", exclamou o público na plateia.

Esta posição pode repugnar pela sua radicalidade. Mas, ultrapassando a questão de vida ou morte de um indivíduo, é válida para a Europa: quem se coloca em dificuldades por sua própria responsabilidade deve contar apenas com um apoio limitado da comunidade. Neste contexto, a subvenção dos governos e dos bancos é necessariamente vista como uma grave violação das regras.

"Salvadores" opõem argumentos de eficiência

Aos apelos cada vez mais prementes por um aumento de justiça, os "salvadores" opõem argumentos de eficiência. Se um banco vai à falência, arrasta outros na sua queda, e perdem-se as poupanças dos pequenos investidores. Se um Estado vacila, todos vacilam, e a ordem pública desarticula-se. E são os mais desfavorecidos os primeiros a sofrer com isso. Em suma: socorrer fica mais barato do que abrir falência.

Distribuir apoios não é isento de riscos. Quando o Banco Central Europeu (BCE) injeta quinhentos mil milhões de euros nos bancos, o risco de inflação é real, se as autoridades monetárias não utilizarem os fundos em tempo útil. Mas o mais importante é que, se a operação for bem sucedida, não custará um cêntimo ao contribuinte e permitirá, simultaneamente, evitar maiores danos. Foi exatamente para isso que os bancos centrais foram criados.

Se se verificar que as medidas de salvação se justificam num plano financeiro, mas minam o fundamento moral da economia de mercado, isto é, da sociedade, o Ocidente ficará na difícil posição de ter que escolher entre a prosperidade e a justiça. Por outras palavras: ou corremos o risco de um colapso, ou nos resignamos, perante o panorama global, a assistir a injustiças em tempo de crise.

A decisão é difícil. Durante a Grande Depressão da década de 1930, os Estados colocaram os valores morais acima de tudo. Recusaram apoios e, com isso, arruinaram a economia. Hoje, colocam a economia acima de tudo, correndo o risco de destruir completamente os seus valores morais. No final, talvez só reste o caminho escolhido pela raposa da fábula: perceber que não se consegue escalar o muro e dizer para nós mesmos, enquanto nos afastamos, “Estão verdes, nem os cães as podem tragar".

Opinião

Empréstimos mais baratos para os Estados!

“Por que motivo pagam os estados 600 vezes mais que os bancos?” A questão, colocada no Monde por Michel Rocard, antigo primeiro-ministro francês, e pelo economista Pierre Larrouturou, suscitou muitas reações na Internet. Os dois autores recordam que, em 2008, quando a administração Bush desbloqueou 700 mil milhões de dólares (540 mil milhões de euros) para salvar os bancos americanos,

a Reserva Federal fez um empréstimo clandestino de um milhão e 200 mil aos bancos em dificuldades com uma taxa inacreditavelmente baixa de 0,01%. Ao mesmo tempo, em inúmeros países, a população vê-se confrontada com planos de austeridade impostos por governos a quem os mercados financeiros não aceitam emprestar dinheiro a taxas de juro inferiores a 6, 7 ou 9%!

Rocard e Larrouturou citam o presidente Roosevelt – “Sermos governados pelo dinheiro organizado é tão perigoso como pelo crime organizado” – e propõem “que a ‘antiga dívida’ dos nossos Estados possa ser refinanciada a uma taxa próxima dos 0%’”.

Não há necessidade de alterar os tratados europeus para concretizar esta ideia: de facto, o Banco Central Europeu (BCE) não está autorizado a emprestar dinheiro aos Estados-membros, mas pode emprestar sem limites a organismos públicos de crédito (§ 3 do artigo 21º dos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais) e a organizações internacionais (artigo 23º do mesmo documento). Poderá assim emprestar a 0,01% ao Banco Europeu de Investimento (BEI) ou à Caixa de Depósitos de França que, por seu turno, poderão emprestar a 0,02% aos Estados endividados para que possam saldar as suas dívidas antigas.

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