Uma imagem do filme "Child’s pose" de Călin Peter Netzer, Urso de Ouro no Festival de Berlim 2013.

No cinema, a autoflagelação compensa

Após Cannes, é a vez do festival de Berlim recompensar um filme proveniente da Nova Vaga romena, uma geração de realizadores ignorada num país sem cinemas. Tal como “Além das montanhas” de Cristian Mungiu, “Child’s pose”, de Călin Peter Netzer, exprime “o sofrimento e o desespero de ser romeno”, explica um sociólogo.

Publicado em 19 Fevereiro 2013 às 16:26
Uma imagem do filme "Child’s pose" de Călin Peter Netzer, Urso de Ouro no Festival de Berlim 2013.

Conheço Călin Peter Netzer, vi os filmes dele, tirando Child’s poseA posição da criança. Vi os filmes de Cristi Puiu, Cristian Mungiu, Corneliu Porumboiu, Cristian Nemescu ou Tudor Giurgiu. Vivo sempre numa realidade que abafa muitas vezes a lógica da civilização. A sociedade, a prisão, o hospital, a escola ou outras instituições são todos temas muito abordados pela Nova Vaga do nosso cinema.

Continuo a pensar que o nosso destino, influenciado pela saída do comunismo, nos permitirá no futuro obter um prémio Nobel romeno de literatura. É verdade que Herta Mulleer foi distinguida com esta recompensa, mas foi mais por ter escrito uma obra que mergulhava as suas raízes nos efeitos da memória do comunismo do que no comunismo em si.

Espero portanto ver um Nobel sobre a transição, sobre este tema acerca do qual a nova vaga romena começou os seus filmes. Que desconheceríamos por completo se não tivessem ganho recompensas internacionais, porque a maioria dos romenos considera-os difamatórios para o país. Esses jovens esforçam-se para obter financiamentos de um organismo, o Centro Cinematográfico Nacional, que atribui muito poucas ajudas.

No entanto, merecem claramente ser ajudados, porque valorizam no mercado mundial a única coisa autêntica que temos: o sofrimento e o desespero de ser romeno. O desespero de caminhar contra a História e ao lado da civilização. No mundo atual, é algo que se vende bem e poderíamos portanto investir nesta autoflagelação.

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Tradição tchekhoviana

Para parafrasear a célebre frase do filme Filantrópica, de Nae Caranfil, já que estamos sempre com a mão estendida para a Europa, o FMI e o Banco Mundial, oferecemos-lhes pelo menos uma bela história. Seria uma forma superior de mendicidade. Vendemos-vos comprimidos de desespero e vós, ocidentais, dais-nos dinheiro, felizes por terem escapado a este drama porque os vossos países foram protegidos pelo acordo de Yalta!

Ainda não vi Child’s pose, mas A Morte do Sr. Lazarescu deixou-me de boca aberta, não pelo facto de a obra se afastar do imaginário convencional, mas por saber que era uma história verídica. O filme de Netzer inspira-se também da visão de Tchekhov, a do desespero de viver num universo onde o livre arbítrio e a liberdade deixaram de ter sentido.

Vi Filantrópica e California Dreamin e fiquei conquistado pela elevação do desenrasca romeno ao nível de filosofia de vida. Sempre que sai um filme da Nova Vaga, fico com uma tremenda vontade de reler obras de Anton Tchekhov, porque fico convencido de que o absurdo é, aqui no Leste, uma maneira de ser e não uma negação da razão.

Universos herméticos

As personagens dos nossos filmes são inspiradas nas obras de Tchekhov. A Roménia da transição é um universo fechado do qual se tenta escapar, mas só é possível fazê-lo na ilusão ou na morte. As personagens de Giurgiu, Porumboiu, Netzer ou Mungiu estão presas num destino transitório, onde a espera é uma longa agonia. Os universos herméticos e a luz baça são as principais características desta corrente cinematográfica que ilustra o nosso mundo. Os raios de sol são muito raros...
Quer sejam sobre o aborto, a fé, as drogas ou a conversão de uma comunidade para o capitalismo, os filmes da Nova Vaga focam-se no individualismo ou egoísmo extremo, na traição e sobretudo na solidão enquanto processo de decomposição e de morte do ser social.
Nessas histórias, a maioria das personagens são mulheres que lutam para controlar o seu destino ou a sua família, enquanto os homens já baixaram os braços há muito. Esses filmes têm um fim aberto, como se cada um deles viesse continuar o que o realizador deixou em suspenso no filme California Dreamin: uma realidade romena arrastada para um rumo que ninguém pode mudar.

Um olhar sem ódio, mas implacável

O que separa estes jovens dos que tentaram enganar a Europa cinéfila logo após 1989, seguindo o princípio “tempos novos... sempre os mesmos”? Essas crianças viveram os primeiros passos da transição, observaram as feridas abertas deixadas pelo comunismo sem ter vivido os seus compromissos. Vivem uma realidade que desumaniza e erige o egoísmo em valor de transição.

Essas crianças não utilizam a sua imaginação para falsificar, mas para narrar. Cresceram com “a chave pendurada ao pescoço” [nos países comunistas as crianças iam sozinhas à escola, muito cedo, com a chave de casa presa num fio à volta do pescoço. Hoje em dia, essas “crianças-chaves” simbolizam os que se desenrascam sozinhos] numa altura em que ninguém tinha tempo para lhes contar histórias. Mas o que mais os diferencia é o olhar desprovido de ódio: contam sem ressentimentos, mostram em imagens os destinos de um mundo em decomposição. Não oferecem soluções, mas são os primeiros homens livres do nosso mundo.

Infelizmente, não têm muito sucesso numa Roménia incapaz de se olhar ao espelho. Estão, como milhões de outros romenos, exilados num ocidente que os aplaude num dia, para os deixar cair na indiferença no dia seguinte, e se afundar no drama de um país da Europa de Leste que não consegue sair desta agonia relatada nas obras de Tchekhov e que chamamos de transição.

Recompensas

A falta de meios como valor acrescentado

A vitória de Child’s Pose, que conta a história de um amor sufocante entre uma mãe e o seu filho e mostra sem rodeios as esferas corrompidas na Roménia, prova uma vez mais que o cinema romeno dos últimos anos faz parte “dos melhores”, realça o România liberă. Para o diário, é um paradoxo, na medida em que se trata de um país

onde a maioria das cidades nem sequer tem sala de cinema, onde as produções recebem poucos financiamentos e cuja repartição causa sempre escândalos.

O diário estabelece também um paralelo entre o sucesso dos filmes nas competições internacionais e o dos ginastas romenos nos Jogos Olímpicos:

O filme de Călin Netzer foi apoiado na Berlinale pelos nossos grandes atletas medalhados nos Jogos Olímpicos. Não se trata de marketing mas de uma semelhança clara. Os desportistas, tal como os artistas, orgulharam o nosso país com prémios, apesar da falta de condições. Tivemos campeões de natação e de polo aquático sem ter piscinas e recebemos uma Palma de Ouro [em 2007, para o filme de Cristian Mungiu, 4,3,2] e o Urso de Ouro com orçamentos minúsculos. Nada do que as autoridades para a cultura e o desporto fizeram justifica estes prémios. Porque os milagres são da competência de Deus. Um Deus, felizmente para nós, cinéfilo.

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